Zeitgeist

De há uns anos para cá tenho vindo a mudar a minha perspectiva sobre o Natal. Claro que exteriormente me deixo envolver pelos mesmos rituais, quer sagrados quer profanos, mas lá no íntimo a coisa mudou muito de significado para mim.

Enquanto criança, era tudo acerca de receber prendas. Deixemos para lá as questões da paz e amor: é hipócrita uma criancinha de 10 anos dizer estas coisas, não faz qualquer ideia do seu significado profundo. É como entrevistar miúdos para a televisão: ou se fazem perguntas para sim/não, ou então é tempo perdido. Portanto: Natal = prendas. Simples, e na esmagadora maioria dos casos, perfeitamente adequado para a compreensão de um garoto.

Quando entrei na adolescência racionalizei o Natal. Não, não foi por descobrir que o Pai Natal não existia! Toda a gente sabe que o Pai Natal é o meu tio e tem pronúncia transmontana. O problema foi mesmo a questão patrimonial: como é que poderia gerir os pedidos para maximizar as prendas? Criei então um algoritmo de extorsão. O Natal tornou-se uma operação criminosa, deixei de receber prendas, era mais como receber uma renda feudal.

Até que um dia chegou a idade adulta. Tornei-me cínico, o que foi profundamente libertador. Para a minha mente idealista e finalmente capaz de grandes saltos intelectuais como entender a ligação entre o solistício de inverno, o Yuletide, o nascimento de Jesus Cristo (as maravilhas da Bíblia: estava em Nazaré para o registo, mas acabamos por ficar sem saber se nasceu antes ou depois do censo romano), o São Nicolau, o Kris Kringle, a Música no Coração, e outras tradições do género, parecia-me profundamente desrespeitoso negociar a propósito desta construção mental do mais elevado calibre. Decorações de Natal logo depois dos fiéis defuntos? E prontamente substituídas pelos cartazes de saldos de Janeiro? O mundo estava perdido.
Mas mantinha-se a questão do Natal: o que fazer com ele? Ignorar a época seria uma opção profundamente absurda, seria como ignorar que em 2012 irá haver um cataclismo. Como no Y2K. Ou no Ano Mil.
Podia alinhar com o resto da malta e deixar-me embeber pelo espírito festivo (e já não falo do álcool). Mas não. Isso seria a solução fácil, mesmo para o meu cinismo.
Portanto, restava-me comprar prendas de protesto. Como um coelho da páscoa. Ou o palhaço. Ou o comboio, ou o circo. Lembram-se do reclame do Chocolate Nestlé? Eu forcei o Pai Natal a uma espécie de ecumenismo festeiro, diluindo a sua influência tirânica sobre a minha vida. E num supremo acto de desafio, capitalizei a questão: doravante, as prendas não mais seriam sob a forma de lembranças a que se poderia atribuir um rosto. Seriam números! E o capital acumulado permitia aventuras mais arriscadas, empreendimentos mais ousados! Passei a comprar prendas, e não só, passei a acumular. Eu disse, o cinismo foi libertador… não do materialismo, mas dos objectos em si.

E depois… o Duarte.

O Duarte revirou a minha perspectiva sob o Natal. Pela primeira vez, a necessidade de assegurar que alguém teria de receber o seu quinhão do saque! Sentia-me como um pirata que tinha subido na hierarquia até ser capitão, e agora tinha mais trabalho administrativo do que de primeira linha. Um bocado como a carreira – ou assim o espera a maioria de nós.
E a coisa começou. No primeiro ano, de forma tímida: bastavam algumas prendinhas genéricas e muitos “biruuu, biruuuu!…” para ter o garoto contente. Mas depois veio o segundo ano. A capacidade de reter as figuras. O velho barbudo. A excitação das prendas. Os chocolates. As dores de barriga. O carrinho de pilhas. Os LEGOs do papá (não mexas! sai! zarpa daqui! não metas na boca!). Os LEGOs da mamã. A mamã tem LEGOs? Sim, estão escondidos… são só para a mamã!
E o terceiro Natal.
A responsabilidade do terceiro Natal.
O Natal começou desta vez muito antes dos fiéis defuntos. Começou em Julho. Com uma prenda estrategicamente estudada para um impacto enorme sobre os gostos do petiz. E vai de procurar. A procura infrutífera lançou pai e mãe na mais abjecta Babel. Mas, eis que em Setembro, surge a salvação.
E em Novembro, mais prendinhas. E eis que aparece aquilo que tínhamos procurado antes. Oh, bolas… e agora? O garoto viu, quer, os olhos brilham de cobiça… e eu sou acometido de um surto de solidariedade para com os meus pais, quando tinham menos um quarto de século de rugas.
Peito feito, VISA atestado, lá passa a prenda na caixa.
Duas prendas. Há que gerir: uma fica para os anos. Qual? Argumentos. Debate. Eloquência. Nódoas negras. Acordo amigável.
Mas a inconstância da infância prega partidas… ele afinal quer a prenda fragmentada. Não chega A. Quer A, B, e C. E o pior é que nem são coisas assim tão absurdas que não se possa tentar arranjar. Recriminações por ainda não o ter ensinado a lidar com a necessidade de escolher.
E lá vêm as prendas. Noite de Natal. Eu, ridiculamente mascarado de Pai Natal: a barba postiça faz-me lágrimas, a almofada debaixo do fato tolhe-me os movimentos. O garoto espantado: quem é este fulano? Como é que ele coube no exaustor? Porque é que ele tem riscos nas mãos iguais aos que eu pintei no meu pai?
Ahhhh, mas a atenção passa para as caixas. O papel de embrulho espalha-se pelo chão (guarda num saco, serve de acendalha!), as caixas acumulam-se, abraços, beijinhos, e… “onde está o papá? Na casa de banho, ele vem já!”. Carrinhos construídos. A mota do carteiro. As roupinhas. O triciclo. A mala do carro que não tem espaço para esta treta toda…
Parte 2, os sogros. Primeiro, exibe orgulhoso as prendas; depois… “outro pai natal?!”. Momento luzinhas de Natal: “UM AVIÃO!” Eu disse, sogra. O puto queria um avião. Mas o pai Natal manda que ele vá ao pote sozinho. “Oh pa este gajo… já deu as prendas e ainda se põe com exigências… toma mas é uma fralda-cueca molhada para veres como elas são!”
E no final da noite mais longa, em casa, o entrar no quarto…
“O FAÍSCA!” (ride-on; bateria de 6V)
Pronto. Este já ficou agarrado à droga. Agora mais uns aninhos de sossego, e depois chega à fase da extorsão descarada. Arranjei lenha para me queimar.

Não pensei que pudesse estar tão feliz no primeiro Natal desde sempre em que não recebi LEGO (o Duarte recebeu dois, e mais três Playmobil). Para comemorar esta felicidade, fui ao sótão e trouxe uma caixa de LEGO para a sala, onde já tinha 30000 peças ensacadas à espera de dono. É. Nada de LEGO nos últimos dias. Eu sei que é difícil, mas acho que provei que é possível.

Feliz Natal. Com ou sem LEGO. Com ou sem prendas no vosso sapatinho. Com ou sem razões para isso. Feliz Natal, porque sim.

Pedro Silva


Publicado

em

por

Etiquetas: